terça-feira, 20 de maio de 2014



ROUPAS AO VENTO

Ela era linda com seus olhos negros e me inspirava um sentimento muito terno.
Joana D’Arc chorava durante o sono e aquilo me impressionava.
Ela sempre me dizia que tinha uma aspiração na vida. Dizia que almejava uma vida ao lado de um bom companheiro e desejava ter uma casa com um varal repleto de roupas se balançando. Sonhava com roupas coloridas ao vento...

Muitas vezes nós nos debruçávamos na janela para observar a rua e eu notava que seus olhos se estendiam para o horizonte. Parecia-me sempre que ela estava buscando alguma coisa bem distante.

Numa tarde estávamos na janela e ela começou a me contar sua história.
Fiquei ouvindo e confesso que não sabia se chorava, se a abraçava. Ou se me calava.
Aos 20 anos não temos muita compreensão do mundo.
Hoje em dia eu me pergunto se fiz a coisa certa, mas creio que sim.
Já houve tempo em que pensei que deveria ter ficado caladinha ouvindo-a e que era só isso que ela desejava: desabafar.

Eu a consolava abraçando-a e sentia que ela gostava muito de meus abraços.
Bem, acredito que fiz a coisa certa. Fui muito carinhosa com aquela garota e ela era extremamente carente.
Joana raramente sorria e eu sempre fora uma garota sorridente. Eu lhe passava uma ideia positiva e colorida do mundo.
Dividíamos um quarto de pensão. Na verdade éramos quatro jovens dividindo aquele diminuto espaço. Isto aconteceu nos ano 70.

Naquela época dizíamos ainda “São Paulo da Garoa”. Houve uma mudança climática e a capital paulista já não tem esta característica. Há uma explicação cientifica para isso.
São Paulo já foi chamada de terra da garoa, quando durante o outono, a cidade passava dias com uma garoa fina. Atualmente, o concreto absorveu muito da sua umidade. Além disso, a poluição ajudou a aquecer a cidade, fenômeno comum em várias regiões do planeta graças ao que os cientistas chamam de aquecimento global. Além disso, essa mesma poluição cria novos fenômenos climáticos como a inversão térmica, que aumenta a sensação térmica de frio na cidade nos dias secos.

Bem, ficávamos na janela observando os transeuntes agasalhados. Ficávamos olhando a rua; olhando a vida que parecia passar tão lentamente. Aquela garoinha dava-nos a impressão que estávamos na Europa e comentávamos isso.
Éramos tão jovens, Meu Deus! E já tínhamos passado por coisas duras. Cada uma à sua maneira.
Eu tivera problemas sérios de saúde e Joana tinha conhecido a dor de ser criada em um abrigo para crianças, o desgosto de ter perdido a família inteira.
Ela estava com 19 anos e havia saído do abrigo há pouco tempo.
Contou-me que ficara irremediavelmente marcada pela vida. Aos 9 anos sua mãe faleceu e outra tragédia aconteceu naquele dia, pois o seu pai, enquanto se encaminhava para o hospital, foi atropelado. Os dois morreram no mesmo dia e deixaram os 9 filhos.
Cada um foi para um lado e ela foi entregue ao juizado de menores.

Chorando ela me contou como sentiu muito a falta dos irmãos e dos pais. E me falou que era com grande ansiedade que aguardava as visitas, na esperança que alguma família a adotasse, mas não aconteceu e os anos passaram.

Aos 18 anos conseguiu empregar-se e estava ali morando conosco.
Imagino como deve ter sido difícil para aquela jovenzinha ter sido criada num lugar como aquele. Justamente ela que tivera uma família tão grande.

Muitas vezes lhe ofereci refeições porque a Joana mal conseguia se sustentar com o salário que recebia. Lembro que ela adorava arroz e comia-o mesmo sem acompanhamento.
Eu sempre fui de comer pouco e de beliscar petiscos. Jamais conseguira comer uma panela de arroz e admirava-a enquanto ela comia.
A Jô (era assim que eu a chamava) ficava muito agradecida porque sempre eu lhe deixava grande parte da minha refeição visto que eu era de comer muito pouco.

Logo me casei e ela costumava me visitar, até que voltei a morar no interior e ficamos por 20 vinte anos nos correspondendo através de cartas e raros telefonemas. Sempre a incentivei muito a procurar os irmãos e ela o fez. Contou-me que encontrou 4 deles. Inclusive uma das mulheres morava bem pertinho do bairro onde ela estava residindo com a sua família.
Contava-me das filhas, enviava fotografias (inclusive quando eram pequeninas e quando já estavam ficando mocinhas) e eu as guardo até hoje.
Como vou me esquecer de uma jovem que me dizia que seu sonho era ter um varal e roupas ao vento?
Senti grande tristeza quando perdemos o contato.  Talvez eu esteja errada em pensar que nos desencontramos porque esta é uma expressão errônea. Nós nos encontramos quando tínhamos que nos encontrar e nos falamos enquanto havia o que conversar.

Por que resolvi escrever esta crônica? Porque guardo a Joana em mim e porque ela me falou um dia: Soninha, você não sabe o que é o egoísmo. Vive repartindo o pouco que tem comigo.
Eu dividia com ela porque era o melhor que eu tinha a fazer e dava-me uma sensação tão boa. Não questionava se era um gesto de altruísmo. Nem pensava nestas coisas naquele tempo. Eu simplesmente dividia o que tinha.
Hoje em dia eu penso que era tão pouco o que eu dava à minha amiga. Tão pouco e para ela significava tanto.
O mesmo significado deveria ter para ela as roupas ao vento se balançando porque necessitava disso. Necessitava desta sensação de aconchego. E sem conhecer a vida eu lhe entreguei isso: uma amizade aconchegante.
Querida Joana D’Arc, onde você estiver, receba o meu abraço bem apertado. 


sonia delsin


NASCEU?

Em meu trabalho costumo me relacionar com muitas pessoas. Estou quase todo o tempo recebendo clientes, vendedores. Algumas pessoas acabam passando por lá só para jogar um pouco de conversa fora.
É um estabelecimento aberto ao público. O lugar é agradável e as pessoas gostam de estar num lugar assim.
Acabo fazendo amizades e eles acabam me contando de seus problemas, de suas vidas.
Muitas pessoas gostam de conversar, ainda mais quando nos dispomos a ouvir.
Dia destes aconteceu um fato bem engraçado.
Um senhor chegou e estendeu a mão perguntando-me:
─ Tudo bem?
Olhei-o toda sorridente e perguntei:
─ Nasceu?
Ele soltou a mão da minha e a passou pelo abdome me falando:
─ Eu me perdi a barriga sim, mas eu não estava grávido.
E caiu na gargalhada.
Fiquei vermelha até a raiz dos cabelos.
A pergunta foi para a pessoa errada. Confundi um vendedor com um cliente que estava prestes a ser papai.
Tentei me justificar.
Ele riu muito e me disse que as pessoas costumam confundi-lo com outros. Disse que deve ter um rosto muito popular.
Meu filho que estava próximo não deixou de me falar:
─ Mãe, você navega na maionese.
Puxa! Mas o cara era parecido com o outro. Era sim.
Hoje a sogra do verdadeiro “papai” passou por lá e eu comentei o fato perguntando pela filha, se o neném já tinha nascido.
Ela me disse que ainda não nasceu e morreu de rir.
Ela ainda me falou:
─ Mas você foi logo perguntando se nasceu sem mais nem menos...
Disse que sim. Que não tive tempo para pensar. Confundi os dois e deu nisso. Disse que preciso ser mais cuidadosa da próxima vez.

sonia delsin


PEQUENA CAMPONESA

Tenho diante de mim um retrato de uma linda menina vestida de camponesa.
Ganhei a foto e porta-retrato no Natal.
Foi um belo presente, para guardar pra toda vida.
A garotinha é Tainá, minha afilhada.
Ela veste um lindo vestido cor-de-rosa, todo cheio de babados.
Traz na cabecinha um chapéu bem camponês e nos bracinhos um lindo buquê de flores do campo... claro!
Como ela é linda, com seus olhos azuis esverdeados ou verdes azulados. Tem uma aparência tão frágil, tão suave.
Os lábios são carnudos e sorriem um sorriso tão doce que me leva a beijar o retrato.
O nariz não é arrebitadinho, mas é tão bem feitinho!
O rostinho é um primor!
Eu lhe tenho tanto amor!
Olhando-a eu penso que tem um não sei quê que sempre me emociona.
Sinto uma saudade apertando o peito, uma vontade de estreitá-la em meus braços.
Abraço o porta-retrato, e tento imaginá-la à minha frente. Chego a ouvir a sua vozinha, a ver a carinha que costuma fazer diante das situações inesperadas.
A ternura invade tudo e vaza de mim. Verto lágrimas... são lágrimas de amor.
Amor por uma criança que num outro canto da cidade brinca na inocência de seus três aninhos.


(dez anos se passaram desde quando escrevi este textinho. Ela está ficando uma mocinha e continua linda)

sonia delsin


MELODRAMA

¾ Não precisa dramatizar.
É o que sempre me disseram: meus pais, irmãos, amigos, meus filhos e você.
Mas como não fazer drama, se é disso que sou feita?
Estou sempre construindo histórias na minha cabecinha de vento.
Tantas vezes sou obrigada a viver a realidade dura, assumir meu eu carnal.
Amo meu eu, este Eu profundo que existe dentro de mim, sei que ele faz parte do cosmos. Mas o material não significa muito, nem me importo em enfeitá-lo porque a beleza física não é o fundamental para mim.
As coisas da Terra não têm a importância que tantos lhe dão. Importo-me mais com coisas muito maiores, mais profundas.
Vivo a conjeturar, vivo no mundo dos sonhos porque sinto que escapei dele para ter que viver aqui.
Sinto que sou a prisioneira de meus próprios sonhos. Vivo de idéias e fantasias e quando assumo meu lado prático sofro por não poder modificar as coisas.
Não aceito e nem assumo meu eu material, sinto-me castigada por ele.
Sinto que preciso vivê-lo e através dele aprender lições de vida, então dou-me por rogada; vivo o eu carnal que se sobranceia ao meu eu espiritual.
Mas existem minhas fugas e meus devaneios e minha mania de dramatizar, de colorir demasiadamente, de antepor, de sobressair. Não posso ser só a dona de casa eficiente se dentro de mim mora uma alma enorme que adora viajar pelo espaço sideral.


sonia delsin


NEGRO GATO, SEBASTIAN

Sebastian é um lindíssimo gato negro.
Parece-se mais com uma pantera negra.
Vive deitado nas almofadas e nas cadeiras da sala de jantar. Também gosta de pendurar-se na toalha da mesa.
Parece ser o dono da casa.
É todo imponente ele! Tem um ar tão arrogante!
A dona não se importa que ele transite à vontade pelos cômodos todos e ele aproveita-se disso.
Vive brigando com a gata siamesa e já o vi dando-lhe umas belas patadas. É que sente ciúmes da dona dele. Não quer repartir carinhos.
Acho engraçado quando ele fica empoleirado no sofá balançando o rabo.
Ah! Esqueci de contar que o pelo dele é deliciosamente macio. 
Gosto dele e nem fico assustada quando ele me lança seu olhar felino.

(tantos anos depois o reencontro. Está envelhecendo o Sebastian e a gata já morreu – o tempo traz tantas mudanças)

sonia delsin


UMA ETERNA APAIXONADA

Era o vento açoitando as folhas e na minha imaginação eram fantasmas...
Assustadoras figuras que eu pressentia entre as bananeiras.
Figuras que povoavam minha mente fantasiosa.
Cresci assim... no meio do mato.
Ouvindo a música da cachoeira, perseguindo borboletas, cigarras, fuçando nos ninhos.
Atravessando pinguelas, admirando a transformação do grão.
Meu moinho de milho que o tempo não destrói não.
Ouvia o balir das cabras. O coaxar dos sapos e rãs... os pássaros a cantar.
Criançada a correr, a pular, a brincar...
Eu era uma delas... uma das mais traquinas.
Era a nona que resmungava ou tossia quase todo o tempo.
E as estórias que mamãe contava!
Meus gatos, os porcos, meus castelos de sabugos.
O rancho onde construí tantos sonhos.
E as jabuticabeiras floridas... carregadas de frutinhas maduras...que tentação!
Não me fartar era uma judiação.
O que posso falar de minha terra amada?
Que por ela sou uma eterna apaixonada.
Que a guardo n’alma, no melhor canto.
Que a menina é eterna em mim e viaja para todos os recantos guardados.
Quando se tem uma lembrança destas a vida fica mais fácil. É doce correr pra lá... quando tudo está ruim pra cá...

sonia delsin


À SOMBRA DA JABUTICABEIRA

As jabuticabeiras da minha infância.
Como me lembro delas!
Minhas narinas estão impregnadas do perfume de suas flores.
Cresci feito moleque travesso subindo nas árvores.
As frutas tão docinhas, as dos ponteiros não eram um desafio.
Não, para mim.
Eu ia tranquilamente buscá-las.
Era deitada à sua sombra, jabuticabeira antiga.
Era a sua sombra que eu gostava de me sentar.
Encostada no seu tronco eu sonhava.
Minha alma solta passeava pelo futuro incerto.
Hoje estou no futuro tão esperado.
E que saudade eu tenho daquele tempo!
Como eu sonhava sonhos dourados.
Fazia e refazia os meus castelos encantados.
A realidade foi tão diferente.
Ainda sonho. Timidamente mas sonho.
Não com aquele desprendimento da minha infância.
Mas ainda sonho...

São Carlos, 14 de agosto de 1994

sonia delsin